Em uma palavra, Ucrânia, Ucrânia, Ucrânia. Minha mulher me dá bronca, bronca, bronca, pois eu não consigo desligar, acompanhando o desenrolar das batalhas, vendo as cenas dantescas na BBC ou escutando os relatos na mesma BBC ou na minha companheira de todas as horas nos EUA, a National Public Radio. Mas é acompanhar pela BBC velha de guerra que mexe com minha memória. Desde adolescente, eu a escutava por ondas curtas. E esta nova guerra na Europa é um petardo emocional, envolvendo uma das histórias mais comoventes na minha família.
Meu pai conviveu com a avó paterna. Ucraniana e trotskista, como o dito cujo, ela chegou ao Brasil em meados dos anos 30, depois do resto da família. Por um tempo, ela teve desavenças com o filho, pai do meu pai. Meu avô era sionista, ao contrário da mãe, e logo depois da Primeira Guerra, ainda adolescente, fez aliá. Tentou kibutz e vida de estivador em Haifa, mas desistiu da então Palestina. Meu avô finalmente veio ao Brasil ainda nos anos 20 e suas histórias (ele morreu meses depois do meu bar-mitzvá) contribuíram bastante para minha formação sionista. Meu avô abandonou a Palestina, mas não o sionismo. E quando as coisas se assentaram no Brasil, já com família, ele então trouxe a mãe e o irmão da Europa. Minha bisavó era teimosa, culta, poliglota e inclusive sabia inglês.
Meu pai me contava uma história que daria um curta-metragem de diretor italiano. A família vivia na Barra Funda, em São Paulo. Quando começou a Segunda Guerra, o pessoal da vizinhança se reunia na farmácia do seu Júlio para escutar a BBC. Havia um mapa na parede.
Minha bisavó baixinha, ficava em cima de um caixote e com uma varetinha, ela ia mostrando a evolução dos combates, conforme escutava na BBC. Meu pai, garoto de sete, oito anos, precisava ficar atento. A avó traduzia do inglês para o ídiche e o trabalho do garoto era traduzir para o português (havia poucos judeus ali na farmácia). Gostaram? Infelizmente, minha bisavó não sobreviveu o suficiente para relatar o final da guerra para o pessoal da farmácia.
Toda a minha família veio da Ucrânia (a avó materna era do que hoje é a Moldávia, que foi passando de mão em mão quando ela cresceu no começo do século 20 e hoje Putin quer tomar posse do país independente). Basicamente, quem ficou para trás, morreu pelas mãos dos nazistas e seus colaboracionistas ucranianos e romenos. Vi agora os detalhes do que aconteceu em Mariupol, hoje devastada pelos russos. Cerca de 250 mil pessoas lá viviam em 1941. Com sua conquista pelos nazistas, quase todos os judeus de Mariupol, uns 25 mil, foram dizimados.
Morte dos sobreviventes
E como sobreviventes do horror nazista (e também stalinista) têm um final de vida tão deprimente, agora com esta agressão de Putin na Ucrânia? Como o compromisso de “Nunca Mais” não consegue vingar em 2022? Está aí a história de Vanda Semyonovna Obiedkova, 91 anos, cuja morte foi reportada pela família em abril. Seu rabino, Mendel Cohen, o único em Mariupol, a descreveu como uma pessoa “boa e vivaz”. No entanto, os primeiros e últimos dias da vida de Vanda foram marcados por tragédia e selvageria.
Em 1941, ela tinha 10 anos, quando os soldados nazistas entraram em Mariupol e detiveram os judeus da cidade. A mãe de Vanda foi levada pela SS, mas a garota conseguiu se esconder em um porão. Ela entendeu que não podia gritar, isso a salvou. O relato é da filha Larissa, que conseguiu fugir da Ucrânia, para o site da organização Chabad. As execuções de judeus, como era o padrão na Ucrânia, ocorriam por fuzilamento. Naquela região, foi o chamado “Holocausto por balas” e não nos fornos crematórios. Entre as vítimas, a mãe e parentes da menina Vania.
Ela acabou sendo detida. No entanto, seu pai, que não era judeu, e amigos da família foram capazes de convencer os nazistas que a menina era grega. Vania ficou dois anos escondida em um hospital, até o Exército soviético retomar Mariupol em 1943. E então em 2022, o Exército agora russo começou a bombardear ferozmente Mariupol. Com a família, a nonagenária novamente se abrigou em outro porão. A filha relatou que não havia água, eletricidade ou calefação. Nada que os refugiados pudessem fazer. Cada vez que uma bomba caía, o prédio sofria um abalo.
A família cuidava da matriarca. Ela estava com sede, com fome, com frio e cada vez mais frágil. Vania insistia em perguntar para a filha: “Por que isso está acontecendo?” Desta vez, não deu para escapar. Vania foi enterrada pela filha, genro e vizinhos em um parque público. E como disse o rabino Cohen, “toda Mariupol se converteu em um cemitério”.
Pelo menos mais um sobrevivente do Holocausto, Boris Romanchenko, de 96 anos, que esteve em quatro campos de concentração, também não resistiu aos bombardeios russos, desta vez na cidade de Kharkiv. E assim caminha a humanidade: seja na Bósnia, Ruanda, Xinjiang, Bucha, Kharkiv ou Mariupol, o “Nunca Mais” acontece de novo e de novo.
Aos vivos
Porém, eu não quero acabar esta coluna em um tom deprê, falando dos mortos. Vamos aos vivos. Nem todo círculo sobre os judeus ucranianos é vicioso. Vamos para um desfecho virtuoso. Em uma casa de repouso, na periferia de Berlim, mulheres octogenárias e nonagenárias almoçam em um ambiente acolhedor. Elas escaparam da morte pela segunda vez em suas longas vidas. E a história virtuosa tem esta ironia. Elas são sobreviventes do Holocausto, que fugiram dos nazistas quando eram crianças e foram libertadas pelos soviéticos. Agora, ao fugir dos russos, elas foram resgatadas pelos alemães.
Um esforço multinacional está em marcha para trazer sobreviventes do Holocausto da Ucrânia para um país que elas tanto temiam quando eram crianças. Uma das afortunadas foi a ex-costureira Sonya Tartakovskaya. Na casa de repouso perto de Berlim, ela pôde festejar 83 anos. Festejar em termos, pois as autoridades ucranianas encontraram evidências de atrocidades praticadas pelos russos na cidade de Sonya. Ela ficou 20 dias sem gás, sem água corrente e sem eletricidade. Perdeu metade do peso, ela que perdeu tantos parentes no Holocausto.
A mesma saga afligiu outra sobrevivente do Holocausto, Alla Sinelnikova, de 90 anos, que chegou de Kharkiv, a segunda maior cidade da Ucrânia e submetida a maciços bombardeios russos, como aquele que vitimou o sobrevivente do Holocausto de 96 anos que mencionei linhas acima. Alla disse que nunca imaginou que viveria tamanho horror pela segunda vez.
Com a família, quando tinha nove anos, ela conseguiu fugir de Kharkiv para a Rússia e não acredita que hoje esteja em Berlim fugindo dos russos. Afinal, metade dos seus parentes são russos e há este parodoxo, pois ela nunca calculou que os russos invadiriam. Disse que nem se quisesse, ela conseguiria odiar os russos.
E também é difícil de acreditar o esforço que exige resgatar estes velhos sobreviventes do Holocausto. A coordenação é de uma organização judaica na Alemanha que administra indenizações para as vítimas. Para cada resgate, estão envolvidas 50 pessoas. Alguns dos sobreviventes se recusaram a pisar na Alemanha e assim são feitos arranjos para serem transportados para Israel, Polônia e Romênia.
Para a Alemanha, foram trazidos até o final de abril mais de 50 sobreviventes do Holocausto. Muitos já tinham uma vida muito sofrida, vulnerável e solitária antes deste novo horror, que foi o assalto russo da Ucrânia. É improvável que retornem para casa (isso, é claro se a casa ainda existir), mas ao menos terão um final minimamente digno de vida. TJ