Na pandemia, a extrema direita e o movimento antivax andam juntos nas ruas

Caio Blinder - Especial para a TJ

Eu escrevo no day after de uma data solene: 27 de janeiro, data da libertação de Auschwitz (1945) e Dia Internacional da Memória do Holocausto (sempre). Sim, conhecemos a palavra de ordem: “Nunca Mais”. Por isso, sempre devemos falar do Holocausto e um dos motivos óbvios, além de honrar as vítimas, é ter a história como ferramenta para impedir novos holocaustos.

Em um dia de reminiscências, eu trombei com uma notícia que mais uma vez provou como o perigo está sempre presente, o perigo de manchar a história. Em um distrito escolar no estado de Tennessee, um conselho decidiu por unanimidade (10 a 0) remover do currículo das crianças uma obra prima: a história em quadrinhos Maus, de Art Spiegelman, filho de sobrevivente do Holocausto.

As “autoridades” educacionais justificaram o cancelamento de Maus, dizendo que a obra contém linguagem profana e nudez. Tomaram uma saraivada de críticas, a destacar a condenação do autor, que rotulou a decisão de orwelliana e perguntou: existe uma forma menos perturbadora para falar do Holocausto? No blá blá blá da tréplica das “autoridades” do Tennessee havia o argumento de que levam a sério o Holocausto e estão longe de relativizá-lo, mas acabam fazendo isso ao tentar amaciar o seu impacto para as crianças. Que coisa bizarra: qual é a destes judeus que não conseguiram vivenciar ou serem dizimados no Holocausto de uma forma mais amigável ou palatável para quem decide as diretrizes educacionais no estado do Tennessee?

Mas, afinal, qual é o status da educação do Holocausto nos EUA? A julgar pelas manchetes de imprensa e pesquisas, a cada ano aumenta o esquecimento e a ignorância. Uma manchete do jornal The Guardian reportou no ano passado que, de acordo com uma pesquisa de adultos entre 18 e 39 anos, 23% acreditavam que o Holocausto era um mito, tinha sido exagerado ou não tinham certeza”.

A rede de TV NBC também noticiou a pesquisa de forma alarmista, enfatizando a “chocante” falta de conhecimento sobre o Holocausto entre os mais jovens, com “metade deles estimando que o total de judeus mortos esteve abaixo de 2 milhões”. E uma outra pesquisa mostrou que 41% dos americanos não sabiam identificar do que Auschwitz se tratava, que era um campo de extermínio na Segunda Guerra Mundial.

No entanto, é preciso ver este desconhecimento sobre o Holocausto de forma contextualizada. Por exemplo, uma outra pesquisa, esta da Voz da América mostrou que 60% dos americanos com curso superior não sabem os requerimentos para a ratificação de uma emenda constitucional e 40% que o Congresso tem a autoridade constitucional para declarar guerra.

E quando a gente examina os americanos em geral (incluindo aqueles sem curso superior) o cenário é ainda mais tenebroso, com 37% deles incapazes de dizer que a eleição presidencial acontece a cada quatro anos e 2/3 ignorantes sobre o tempo de mandato de um senador e de um deputado. Dá para imaginar que quase metade dos americanos não consegue listar quais são os três poderes? Neste contexto, até que é impressionante o conhecimento dos americanos sobre o Holocausto, um evento que teve lugar fora do país. Afinal, mais de 8 em 10 sabem que foi a tentativa de aniquilação do povo judeu.

Estupidez humana

Então, da minha parte, eu vejo no episódio do distrito educacional no Tennessee mais um caso de estupidez humana do que de antissemitismo ou coisa do gênero. Mesma história (sic) sobre outro distrito educacional (este no Texas), com a recomendação de que o estudo do nazismo e do Holocausto fosse mais balanceado, mostrando o outro lado da questão. Faz lembrar a infâmia de Donald Trump em 2017 quando neonazistas marcharam na cidade de Charlottesville e ele disse que havia “gente boa” dos dois lados. Que disparate: um dos lados marchando com tochas e bradando “judeus serão substituídos”.

O 27 de janeiro foi realmente dose, mais uma lição de estupidez humana. Postei no Twitter a respeito e a horda bolsonarista respondeu com o estrume esperado, apelando para as comparações entre as vítimas do Holocausto e a minoria humana que se recusa a tomar vacina e se considera tão vitimizada como as pessoas que foram enfiadas nos fornos crematórios. Vocês conhecem a barbaridade que é o movimento antivax, certo? Esta gente que marcha nas ruas estampando a estrela amarela de David, como se fosse estigmatizada com a mesma carga das vítimas do Holocausto, esta gente que compara o forno crematório à necessidade de cumprir determinações que zelem pela saúde pública.

Na Jovem Pan (minha casa por 23 anos), comentaristas insistem em relativizar o Holocausto, a exemplo do ex-jornalista Augusto Nunes que comparou o infortúnio de dono de pousada em Fernando de Noronha, que teve seu negócio fechado por não ser vacinado, ao das vítimas do Holocausto.

Na minha tarefa de Sísifo, eu postei o depoimento de uma sobrevivente centenária do Holocausto dado em Bruxelas no 27 de janeiro, implorando aos jovens que estudem o Holocausto e deixem de fazer estas comparações espúrias entre as vítimas e pessoas que chafurdam no negacionismo pandêmico. Não adiantou: os negacionistas mantiveram a carga no meu Twitter, com um deles postando uma foto de forças de segurança nazistas, pedindo documentos de pessoas nas ruas, ao lado de um aplicativo com passaporte sanitário. O gaiato disse que o nazismo era mais atual do que nunca nestes dias de cerco dos libertários. Escrevi que a única coisa atual na questão era a perene imbecilidade humana.

Olavo de Carvalho

Não podemos relaxar com estas hordas. Existe uma correlação entre o movimento antivax e a extrema direita, os negacionismos da história e da ciência se cruzam nas ruas e nas redes sociais. E que final de janeiro. Tivemos também a morte do Olavo de Carvalho, o guru da extrema direita brasileira, que tinha acabado de pegar Covid e que passou dois anos fazendo chacota e disseminando teorias conspiratórias sobre a pandemia. Olavo era figura suprema de uma tribo que tem uma relação mística com uma Israel fantasiosa, uma tribo que faz questão de exibir as bandeirinhas do Brasil, EUA e Israel nas redes sociais.

Uma grande ironia no Brasil é que o bolsonarismo (vanguarda do atraso em tudo), tão cioso na sua sabotagem de medidas de combate à pandemia e tão aguerrido para defender Israel, prefere ignorar o fato de que o governo e a sociedade israelenses estão na linha de frente nesta guerra contra o vírus. Só falta esta gente atrasada, como o ex-jornalista Guilherme Fiúza, também na Jovem Pan, rotular o governo de Israel de nazista por jogar duro na pandemia.

Estes negacionistas brasileiros que usam e abusam do Holocausto ao colocá-lo no mesmo patamar da “dizimação” das liberdades individuais na pandemia, felizmente não arregimentaram a imensa maioria dos brasileiros. Mesmo a base de sustentação de Bolsonaro em larga escala não é embalada por sua arenga negacionista. Por tradição, o brasileiro acata a vacina. E aqui está a ironia. No resto do mundo, a desobediência às normas sanitárias acontece de baixo para cima (nem Trump era tão aloprado como Bolsonaro), enquanto no Brasil ela acontece de cima para baixo.

Um pequeno consolo no registro do Dia Internacional da Memória do Holocausto neste 27 de janeiro. Tivemos outra sinalização da normalização de relações entre Israel e o mundo árabe-islâmico, onde a data não passou desapercebida e a tragédia suprema do povo judeu não apenas deixou de ser ignorada, mas agora é reverenciada.

Powered by WP Bannerize

Powered by WP Bannerize

Powered by WP Bannerize

Powered by WP Bannerize

Powered by WP Bannerize