Eu havia jurado dar um tempo a Donald Trump nesta coluna, mas serei desleal à promessa justamente em razão de mais uma polêmica desatada pelo presidente em agosto. Por incrível que pareça, Trump ainda choca.
Ao questionar a lealdade de judeus democratas a Israel e ao povo judeu, o presidente flertou com clássicas noções antissemitas de que os judeus são desleais aos países onde estão enraizados ou os colocam em segundo plano, pois em primeiro lugar está o povo judeu, mais do que a pátria.
A deslealdade existe pela existência de dupla lealdade. Quem pode confiar nos judeus? Pelo raciocínio de Trump, nem os judeus devem confiar nos judeus, esta gente ladina. No seu lance venenoso para colar os judeus na ala mais radical do Partido Democrata, ele tenta ganhar vários pontos, mas essencialmente os trata como bodes expiatórios.
Com o veneno, Trump conseguiu a proeza de ser criticado até pelo Aipac, o lendário lobby pró-Israel que atua em Washington e que sempre fez o que pôde para ser leal a qualquer poder de plantão, seja republicano, seja democrata.
E seja pela direita, seja pela esquerda, os judeus sempre sofrem com as acusações de dupla lealdade: Hitler e Stálin, apenas para ficar no século 20. A população alemã acreditava na propaganda nazista de que os judeus tinham traído a Alemanha, enquanto os comunistas em Moscou (inclusive judeus) diziam que escritores judeus eram “cosmopolitas sem raízes” e não eram plenamente leais à União Soviética.
Existem as histórias irônicas dos judeus se esforçando ao máximo para provar suas raízes nacionais. Na Alemanha, não adiantou nada terem combatido com galhardia pelo kaiser na Primeira Guerra Mundial. Judeu que não fugiu nos anos 1930, acabou em campo de concentração, não importava o peito cheio de medalhas conferidas pela pátria.
Na Guerra Civil americana, judeus se alistaram em números proporcionais nos dois lados, em parte para provar devoção ao Norte e ao Sul, assim neutralizando os estereótipos de lealdade suspeita.
E precisamos admitir a tensão interna no judaísmo sobre identidade, envolvendo vetores como nação, tribo e religião. Claro que a tensão se acentuou depois do retorno dos judeus a seu lar nacional, com a proclamação do estado de Israel em 1948. Em entidades judaicas ou sinagogas, lá estão as bandeiras nacional e a de Israel. No entanto, mesmo sem seu próprio estado, os judeus eram submetidos a acusações de serem uma nação própria, com sua cultura e leis, e não meramente uma religião.
O quadro é complexo e o relacionamento de Trump com os judeus é de fato um quebra-cabeça. Sempre estive à vontade para cunhar Trump como racista, mas nunca o taxei de abertamente antissemita. Existe a defesa marota: como ele pode ser antissemita? Sua filha Ivanka se converteu para casar com um judeu praticante. Trump tem netos judeus. Seu apoio a Israel é indiscutível e estridente. Benjamin Netanyahu é como um irmão de sangue. Por toda a sua vida, ele teve funcionários e advogados judeus.
Mas esta defesa de Trump por si não invalidaria a acusação de antissemitismo (embora eu reitere que não a compartilhe). Por aí, seria o mesmo que apelar para a paródia: eu racista? Impossível, até tenho amigos negros.
Prefiro seguir outra linha de raciocínio. Trump pode não ser antissemita, mas sempre disse um monte de coisas antissemitas. O caso mais escancarado justamente é nas declarações sobre “deslealdade” dos judeus a Israel e, mais grave, o alvo acaba sendo a grande maioria dos judeus americanos, que por tradição votam no Partido Democrata. Para dar a medida mais recente, nas eleições para o Congresso em 2018, 80% dos judeus votaram em candidatos democratas.
Existe um histórico de Trump tratando os judeus como mais leais a Israel do que aos EUA. Numa festa de Chanucá no ano passado, ele disse a líderes judeus: Israel é o “seu país”. Em abril, no encontro anual da Coalizão Judaica Republicana, Trump afirmou que Netanyahu é “o seu primeiro-ministro”.
E há o prontuário dos estereótipos mais vexaminosos antes da presidência, sugerindo a ganância e obsessão de judeus com dinheiro, além do seu uso para controlar a política e a imprensa e talento para dobrar os outros em negociações. A ironia é que mesmo apelando a estes estereótipos, Trump acha que está expressando admiração, afinal ele é conhecido por sua avareza, uso do dinheiro para chegar ao poder e “fantástico poder de negociação”. Nestes termos, Trump seria mais filossemita do que antissemita.
Decepção com os judeus
Aqui chegamos num ponto até bizarro da discussão, pois envolve o narcisismo de Trump. Na acusação feita aos judeus americanos de não serem suficientemente pró-Israel, ele os critica por não se moldarem ao clássico estereótipo antissemita da lealdade. Trump, o narcisista, está decepcionado com os judeus. Se ele se mostra tão leal a Israel, como os judeus americanos não agem da mesma forma? Como eles não são leais ao presidente, preferindo votar nos adversários?
Com cara de pau, Trump já disse ser a pessoa menos racista no planeta. Só falta ele dizer ser mais judeu do que qualquer judeu, especialmente os “desleais” que votam no Partido Democrata.
Pelo visto, os judeus no século 21 são sortudos. Os nacionalistas modernos dosam seu antissemitismo (ok, repito que não chego ao ponto de inserir Trump neste listão) com pitadas de judeofilia (esta admiração por judeus).
E nesta sorte judaica, os sentimentos são compartilhados pela esquerda e pela direita, muitas vezes por razões táticas para desfazer a imagem de antissemitismo. Jeremy Corbyn, o notório líder da oposição trabalhista na Grã-Bretanha, por estes dias, não desperdiça a chance de posar ao lado de um rabino, de preferência bem ortodoxo.
Há esta mescla de antissemitismo e admiração por judeus, mas também um antissemitismo seletivo, à la carte. Não bastasse que entre nós, haja o debate sobre quem é bom ou mau judeu, a categorização envolve o mundo lá fora.
No meu caso, por exemplo, é comum eu ser definido como mau judeu ou “desleal” ao povo judeu por muita gente no Brasil fanática por Netanyahu, Bolsonaro e Trump (judeus e não judeus). O essencial é destacar que houve algumas mudanças no antissemitismo. Ele se tornou seletivo, pois com exceção de algumas franjas neonazistas e islâmicas, ninguém quer se assumir como abertamente antissemita.
Pela esquerda e pela direita, líderes judeus e não judeus abraçam gente suspeita de antissemitismo. Eu já expressei aqui o meu horror algumas vezes pela amizade consolidada entre Netanyahu e o primeiro-ministro húngaro Victor Orbán, que trafega na fronteira do nacionalismo xenofóbico e o antissemitismo.
E nos EUA, temos tantos judeus que abraçam de forma efusiva as duas deputadas muçulmanas que estão no coração da última polêmica de antissemitismo. Estas duas deputadas, Rashida Tlaib, e Ilhan Omar, acusaram os judeus de dupla lealdade (a Israel e aos EUA). Opa! Não era este o papo venenoso de Trump?
Uma ala da comunidade judaica se radicalizou a tal ponto, que aderiu à narrativa de militância contrária a Israel de que antissionismo e antissemitismo não representam a mesma coisa. Também confundem estado e governo em Israel. Há gente com tanto ódio de Trump na comunidade judaica americana, que resvalou para ódio a Israel devido à política externa americana e aos laços íntimos de Trump com uma ala política do Estado judeu.
A vida com Trump ficou tão maluca, que ele é capaz até de converter judeu ao antissemitismo.