Eu escrevo na terça-feira de Carnaval, em meio às folias genocidas de Vladimir Putin. Na névoa da guerra, eu queria evitar o assunto, impossível, pois vivemos um vertiginoso mundo novo. A guerra começou e não sabemos como irá terminar. Não é obviamente meramente uma guerra contra a Ucrânia. É uma guerra contra a Europa, é uma guerra contra a civilização ocidental, é uma guerra de Putin contra a história. O ex-agente da KGB se rebelou e partiu de vez para a ignorância. Ele que nunca aceitou o resultado do jogo da Guerra Fria, quer reconstruir muros de Berlim, o que na linguagem da geopolítica é conhecido como esferas de influência.
Claro que, como tanta gente, estou surpreso com o vertiginoso e perigoso desenrolar dos acontecimentos. Mais uma vez, subestimei a brutalidade humana. Não imaginei que Putin atentasse ir tão longe e deflagrasse o ataque em larga escala contra a Ucrânia. Agora, na retrospectiva fica mais fácil entender meu erro de avaliação.
Afinal, em 2005 Putin vaticinou que o colapso do império soviético tinha sido o maior desastre geopolítico do século 20. Putin é um revisionista histórico e vai para a guerra com seus tanques, seus hackers, sua máquina de desinformação e no melhor (ou pior) estilo soviético com a sua agitprop. E ele vai mais longe, mais fundo, mais soturno. Ele vai à guerra com sua ameaça nuclear. Sim, o chefe da máfia russa recorre a este tipo de extorsão. Como enfrentar este tipo de inimigo? Não se trata mais de brincar de montanha russa, com Putin o jogo é roleta russa.
Putin também é um oportunista. Por que foi à carga contra a Ucrânia em fevereiro de 2022? Cansativo escutar os trumpistas bradarem que Putin está aprontando agora porque Biden é o presidente. O raciocínio é outro. Eu diria que havia uma divisão de tarefas. Caso Trump tivesse sido reeleito, ele daria o sinal verde para Putin invadir a Ucrânia, como Putin deu o sinal verde para os acólitos de Trump invadirem o Capitólio em janeiro do ano passado, batendo na tecla de que Biden era presidente ilegítimo, tinha fraudado a eleição.
Concordo que parte do oportunismo de Putin foi motivado pelo espetáculo da polarização americana, nada como ver o principal oponente tão dividido, com parcela expressiva da população sequer aceitando a legitimidade eleitoral do presidente, ecoando o discurso orwelliano de Trump de que ele é o paladino da democracia.
Putin também novamente tirou proveito das contradições e hipocrisia dos europeus, sem falar de suas vulnerabilidades. Eu adoro Angela Merkel, mas é inconcebível que ela tenha incrementado a dependência alemã do gás russo depois da primeira invasão da Ucrânia em 2014. E Putin estimou que o presidente ucraniano Zelensky era um mero palhaço. Sério?
Invasão anunciada
No final das contas, porém, agora fica fácil enunciar que se trata da crônica de uma invasão anunciada. Putin não é hipócrita, ele é o que é: um revanchista ressentido, incapaz de saltar para o século 21. Ele segue congelado na Guerra Fria, seu mundo terminou em 1989 quando ele era agente da KGB em Dresden, na ex-Alemanha Oriental, e precisou se apressar para queimar os arquivos. Claro que Putin se reinventou no século 21, como paladino do nacionalismo e do conservadorismo cristão. Com isso, passou a ser idolatrado pela direita mais reacionária em todas as partes do mundo. E no redondo da Terra, os extremos se tocaram e o ex-agente da KGB é defendido hoje pela esquerda jurássica e pelo bolsotrumpismo.
Li algo interessante no Twitter. A invasão do tirano imperialista Putin recebe uma passada de pano pela esquerda jurássica, pois do outro lado está o tal do “imperialismo estadunidense”. Putin é tolerado, embora seja xenofóbico, homofóbico e perseguidor de minorias. A esquerda jurássica passa o pano apesar dos seus pecados. Já a direita mais reacionária acolhe Putin justamente por seus pecados.
Lá em cima, eu comentei as vulnerabilidades da Europa. Entre outras coisas, Putin promoveu e financiou a extrema direita e passou a contar com vários garotos e garotas de propaganda, como o italiano Matteo Salvini e a francesa Marine Le Pen. Este pessoal, ao estilo Trump, batalhou pela dissolução da Otan. Hoje vemos um recuo destes extremistas, ciosos para não serem relacionados à pessoa hoje mais odiada na Europa. De resto, Putin se tornou um garoto-propaganda da Otan e da União Europeia (ele que, aliás, fez a sua parte para o sucesso do Brexit).
Também escrevi lá em cima que Putin se recusa a saltar para o século 21. Serei contraditório e digo agora que, de certa forma, ele exemplifica o século 21 do, usando um pleonasmo, do fortalecimento do homem-forte (ok, pode ser também mulher-forte), mas no geral se trata de um exemplar de masculinidade, de quem bota para quebrar sem maiores escrúpulos ou respeito às normas. Não é à toa o fascínio que Putin exerceu sobre figuras como Trump, Bolsonaro e Netanyahu.
Falando em Israel, a gente sabe que muitos judeus que foram para o país nos últimos 30 ou 40 anos da ex-União Soviética nutriam esta fascinação pelo homem-forte Putin. Eu uso o verbo nutrir no passado, pois Putin cruzou a linha vermelha com a invasão da Ucrânia e o encanto acabou para muita gente. Adorei a história de um bar de Tel Aviv (propriedade de três judeus russos) que deixou de se chamar Putin.
A invasão, a propósito, colocou Israel na saia justa. Além da sensibilidade com a existência de duas grandes comunidades judaicas na zona de fogo, havia um acordo tácito com o homem de Moscou na Síria. Israel conseguiu a proeza de ter a tradicional aliança estratégica com os EUA, mas alcançou um modus vivendi com a Rússia, que acata os constantes bombardeios israelenses na Síria (estado-cliente de Moscou), em particular contra as posições do Hezbollah. No entanto, é difícil manter a neutralidade nesta crise ucraniana. Não existem dois lados. Existe apenas o lado ucraniano. O outro lado do muro é quem quer construir os muros, assim desmontando a placidez europeia no pós-guerra em que os conflitos (exceto na ex-Iugoslávia) foram resolvidos pacificamente em uma estrutura democrática. Putin é um choque de realidade. Como disse, não sabemos como irá terminar esta guerra. Eu adoraria desfechos fáceis em que algumas considerações de segurança da Rússia (que tem poder de barganha com seu arsenal geopolítico e cacife de ex-império) seriam levadas em conta, desde que a soberania da Ucrânia fosse respeitada.
Putin quer mais
Mas, sabemos que Putin quer muito mais, seu ressentimento vai além da Ucrânia e da Otan. Envolve o temor de modelos alternativos para sua própria população, um modelo europeu de democracia e resolução pacífica de conflitos. Por este motivo, tudo o que acontece na frente ucraniana é acompanhado com atenção em Pequim. A ditadura chinesa, uma aliada de Putin que se sente desconfortável com a delinquência dele, considera a crise em curso um ensaio do que pode acontecer em Taiwan. O que fará o Ocidente caso Pequim decida ir à carga para conquistar o que define como província renegada? Como a Rússia, a China atua com a mentalidade de esferas imperiais de influências.
As peças se reposicionam rapidamente no tabuleiro global. O Japão, preocupado com a China, cogita de abandono do seu pacifismo, acolhendo armas nucleares americanas no seu território. Houve uma ótima sacada de que de fato Putin é um gênio, pois em um fim de semana ele conseguiu matar o pacifismo alemão e a neutralidade sueca/suíça com seu assalto na Ucrânia.
Peço desculpas se esta coluna ficar desatualizada, mas sou vítima de um ataque vertiginoso da história.